"Acordou a meio da noite na sua cama. Certamente a mãe a deitara lá. Ana Maria estava na cama ao lado, de braços colados ao corpo, a praticar para ser cadáver. Saltou da cama e, pegando numa tesoura, cortou os longos cabelos negros da irmã. Ana Maria não se apercebeu de nada. Estão a ver? Está morta. Como era gorda demais para ter um marido, umas madeixas a menos não tinham grande importância."
Mariana olhou para suas mãos. Sentiu-se esquisita, ali de pé no chão frio a segurar os cabelos de Ana Maria no meio daquela escuridão. O que a levara fazer aquilo? O cabelo da irmã parecia um pequeno tapete todo desfiado. Escondeu-o por debaixo da cama de Ana Maria.
Acordou de manhã de um sono sombrio e viu Ana Maria e a mãe debruçadas sobre si com Catarina a fazer uma birra atrás delas.
- Corta o cabelo dela! Berrou Ana Maria
- Não fui eu! – murmurou Mariana agarrada a colcha da cama."
"A sua oração naquela noite foi: Hei-de-vencer esta prova e todas as provas. Nada - ser freira , estar encarcerada, viver em tempo de guerra, nada me separará da vida do meu coração. Envia-me todos os obstáculos que quiseres, meu Deus, para que eu possa ultrapassá-los. "
"Sentiu fome, uma necessidade urgente a jorrar. Corria o risco de encontrar Catarina no refeitório. A Irmã Angélica de Noronha ralhou com Mariana por chegar tarde. Serviu-lhe uma concha de sopa e uma côdea de pão para servir de colher.
De repente avistou Catarina, vestida com o hábito branco das postulantes e noviças. “O meu estômago está vazio. Por favor, não me dês nenhuma notícia triste!” Catarina fez-lhe um gesto como se dissesse: “Come, Mariana. Peço-te. Não deves culpar-me por te algo para te dizer”. A seguir levou as mãos ao rosto e deixou-as escorregar lentamente enquanto fechava os olhos. Uma máscara da morte.
A Irmã Francisca Freire bateu no peito fazendo sinal a Mariana para comer. “Tem coragem. É preciso que saibas a verdade”."
"Catarina ensinou Mariana a escutar o que se passava para lá dos muros do claustro, a debruçar-se sobre o silêncio interior e deixar-se transportar. Escutou a respiração de Baltazar, assegurando-se assim de que estava vivo. Pelo ritmo da sua respiração, podia avaliar se ele estava com medo. Ansiava por ouvir, e então a sua imaginação inventou o ruído de espadas a cruzarem-se, tiro de mosquete e cavalos a relinchar. Tapou os ouvidos, amedrontada.
Deitou ao lado de Catarina para viajarem juntas. Talvez fosse menos assustador. Deram as mãos e ficaram muito quietas para ver aonde o silêncio as levaria.
- Baltazar! Por que é que não há guloseimas nos santuários às almas penadas?"
"Naquela noite Mariana não conseguiu afastar-se do clamor que reinava no locutório, onde os soldados de visita bebiam e falavam das suas aventuras em voz alta. A Irmã Genebra Nogueira abrira-lhe as portas do convento. A multidão abriu novamente caminho quando Mariana entrou. E lá estava ele. Não sabia seu nome. Era uma silhueta na noite. Andava à procura dela. Avançaram um para o outro ao mesmo tempo, Mariana estendendo as mãos para encontrar as dele. A peruca do capitão estava impecavelmente penteada e a sua farda era a mais resplandecente que jamais vira. Ele colocou-lhes nas mãos uma medalha de São Cristóvão, o Viajante. A medalha queimou-lhe os dedos. Ele inclinou-se e beijou -lhe a mão. Em breve ela estaria deitada, às voltas na cama sem poder dormir, incapaz de ficar dentro da sua própria pele."
"Foi ela quem deu o primeiro beijo, para surpresa dele: sentiu-se logo arrebatada no ar, os braços e pernas em volta dele. A mais bela das mulheres, o mais afortunado dos homens.
Como podia sobreviver até à noite? As suas costelas ainda estavam doridas do peso dele, as entranhas doíam tanto que não sabia ao certo se era devido à paixão dele ou à sua. O fato de o amor causar tanta dor no início não a surpreendia."
"Naquela noite ficou tanto tempo imóvel dentro dela que o sagrado coração esculpido na cabeceira da cama lhe ficou gravado na testa. - És audaciosa e infatigável. Onde é que aprendeste a amar assim? - Nasci com essa sabedoria."
"- Tens realmente 29 anos?
- Tenho. Já sou um velho.
- Não é por isso. Não consigo imaginar-te com essa idade e ainda solteiro.
- Talvez ainda não tenha encontrado a mulher ideal. – Mas, ao ver sua expressão, apressou-se a acrescentar: - Estava a brincar, Mariana! Espanta-me que todas as tuas ansiedades ainda não te tenham aniquilado.
- Amo-te mais do que a toda a minha vida."
"Seria paciente, mesmo que a sua temperatura oscilasse tão loucamente como na manhã seguinte, passando por tremores quentes a frios, obrigando-a a dar entrada na enfermaria. As suas convulsões levaram a própria Irmã Juliana de Matos a dizer em voz baixa. – Pobre Mariana. Repousa. Desculpa-me por odiar-te.
Perto da meia-noite saiu da cama e arrastou-se até a sua casinha, pois nada era pior do que sentir a falta dele. Ao encontrá-la a tremer, Noel disse:
- O que é que eu te fiz? Não parece tu.
- Sou mais eu do que jamais fui."
"Mariana sentia que, sob o abraço apertado, Noel aguardava que ela o deixasse. Não estava a portar-se como um amante, mas como um cavalheiro. Murmurava os motivos que o levava a deixá-la, fria e ordenadamente, mas a mão acariciava-lhe os cabelos e isso bastava para despedaçar a alma de Mariana. E quando ele voltou a dizer: - Pensa em mim – ela pensou: “O que me restará então? Se eu nunca mais puder voltar a ver-te? Não! Isso é impossível! Ficarei sem olhos? Não te ouvir mais? Perderei as orelhas. Nunca mais me queimar no fogo que nos consome? De que me servirá então o tato?”
" E se tentasse falar seria como cuspir pedaços do seu esqueleto dilacerado. As lágrimas jorravam silenciosas, a boca aberta sem poder falar, a magoa e as palavras escoavam-se do seu corpo ao vê-lo partir."
Primeira carta
"E, contudo, agarro-me com afeição ao sofrimento que me causaste: consagrei a minha vida à tua desde o primeiro momento em que te vi e orgulho-me de ter feito tal sacrifício. Mil vezes por dia envio os meus suspiros para te procurarem por toda a parte, mas e única resposta à única resposta à minha inquietação é uma prudente voz de aviso, frei ao meu triste destino e suficientemente desumana para me proibir a mais ligeira ilusão, que me repete a todo o momento: Descansa, pobre Mariana! Deixa de te mortificar em vão e de procurar um amante que nunca mais voltarás a ver..."
Quarta carta
"Releu-a várias vezes durante os dias seguintes para ter certeza de que não estava a interpretar mal o que a carta dizia, e depois tirou as pulseiras que trazias escondidas sob as mangas. Despedir-se do São Cristóvão e do retrato do amante custou-lhe bastante mais e ficou a fitar a sua fisionomia até a gravar na memória – como se ele não existisse irrevogavelmente dentro de si. Juntou estas coisas às outras cartas dele. Guardaria esta última, juntamente com outra breve missiva que, compreendia-o agora, ele esperava ser sua ultima carta para ela. Haviam de lembrar-lhe que ele estava a ajudá-la a ser forte. "
"- Endireita as costas, Irmã Mariana. É preciso ter orgulho. Tens de salvar-te a ti mesma.
- A mim mesma?
- E a mim também – Disse a Irmã Francisca Freire – És parte de mim."
"“- Amo-te. Ainda te amo. Hei-de-amar-te sempre. Venero todas as alegrias e sofrimentos que o teu amor me proporcionou. Não quero curar-me do meu amor por ti. Sou suficientemente forte para amar-te, embora talvez nunca volte a ter-te. Serei alguma vez capaz de sentir alegria com as tuas viagens, jantares, o fato de estares bem sem mim? Um dia hei de imaginar- tudo isso sem pestanejar. Hei de ser capaz, meu amor.""
"- Quebrei um voto que me foi imposto. Nunca quebrei o voto que se encontra alojado no meu coração. Nunca, nunca!"
"- Sou uma erudita."
"Tenho 36 anos. Como é que cheguei a esta idade? A minha irmã Peregrina tem quase 16 anos, às vezes penso que estou compartilhando tudo isso contigo, Noel. Mas outras penso que o volume do livro da minha vida continua a escrever-se por si só, quer queiras ou não sentar-te ao meu lado junto à lareira e lê-lo. Quer queiras ou não que a maior parte dele continue a ser colorido pela minha paixão."
"- É muito mais difícil amar do que sofrer. Amar com toda simplicidade, sem termos de nos pôr à prova, é bom. Mas amar após enfrentarmos uma tragédia é heróico. Deverias penetrar no amor e voltar a senti-lo, Irmã Mariana.
- É o que eu faço.
- Não fazes nada. A dor instalou-se no teu espírito como um livro colocado numa prateleira muito alta. Pega nesse livro e abre-o porque o nome daqueles que ama está lá inscrito.
- Não. Mas, Mariana não conseguia desobedecer-lhe. Nessa mesma noite esticou o braço e tirou o livro sobre Noel que se encontrava no interior do túnel sem fundo. Abriu a capa do livro. Dores agudas fizeram-na rodopiar na volta; apesar de as freiras dizer que o tempo curava tudo, nunca deixara de amar Noel."
"“O meu amor continua a visitar-me através de revelações” – pensou Mariana. – “Abençoado sejas, meu amor”."
"- Amo-te. Continuo amar-te. Acarinho todas as alegrias e pesares que o teu amor me deu.
Era o trigésimo quinto aniversário da partida de Noel. O que poderia acrescentar à oração deste ano?
- Não tenho nenhum dinheiro, quem é poderia imaginar tal coisa! Mas, sinto-me incrivelmente feliz. E tu, meu amor? Espero que tenha casado, que estejas próspero e rodeado de filhos. Digo-te isto como se me tivesses deixado ontem. Mas tu nunca me deixaste, nunca, meu querido amor!"
"As cartas de amor começavam sem fazermos idéia do que iríamos dizer e terminavam sem compreendermos o que proclamavam. Na altura não tivera noção do que dissera ao certo, tal como não a tinha agora.
O amor não era um recital."
“Agora posso perdoar-te, meu amor, a falta indesculpável de teres lançado as minhas palavras e a minha inocência aos olhos de um publico displicente. Posso perdoar tudo. Posso perdoar tudo e a toda gente, já que te perdôo isto.”
“Pedi para que me fosse enviado um grande e eterno amor e tenho-o sentido já há algum tempo. Só que não aceitei que fosse meu de uma maneira que não imaginara.”